quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Uma floresta na água


Fui de férias e deixei o blog pendurado. Ainda por cima com a promessa de um conto... Não se faz!

Mas já estou de volta. Portanto, sem mais adiamentos, aqui fica "Uma floresta na água".


Esta é a história do João, um miúdo que vivia sozinho numa cabana numa floresta no fundo de um vale.

A casa do João tinha sido construída por ele mesmo no centro do vale, junto ao riacho, no ponto em que se encontravam as duas montanhas que o ladeavam. Para evitar as correntes de água que invadiam as margens do riacho em alturas de maior chuva, o João construiu a sua cabana no cimo da árvore mais antiga do vale, um velho carvalho tão velho, tão velho que já era velho quando os tetra-tetravós dos velhos da região ainda eram tão novos quanto o João.

Ninguém sabe ao certo porque é que o João vivia sozinho no cimo daquela árvore. Há quem diga que era órfão, há quem diga que não. Há quem diga que era filho do alfaiate, há quem diga que isso é disparate. Há quem diga que era selvagem, há quem diga que se perdeu numa viagem. Ninguém sabe.

O que todos sabiam é que o João era um miúdo feliz e que todos gostavam dele. Quando os restantes habitantes do vale se cruzavam com ele eram sempre brindados por um enorme sorriso e muitos abraços. Mesmo quando passava a correr (o que era muito frequente), o João parava sempre para cumprimentar convenientemente toda a gente.

O que poucos sabiam é que, na verdade, o João não vivia sozinho. Ou melhor, não vivia com ninguém, mas estava sempre acompanhado.

Baralhados? Bom, eu explico.

Para o João, toda a floresta era sua companheira. Quando era muito pequenino, enquanto as restantes crianças do vale aprendiam a falar português, o João aprendia a falar arvorês, riachês e passarês. Enquanto as restantes crianças do vale aprendiam a ler e a escrever, o João aprendia a ouvir e a falar a música da floresta.

O seu maior companheiro era precisamente o carvalho onde tinha construído a cabana. Os dois costumavam conversar durante horas, ao longo das quais o João contava sobre as suas aventuras do dia e sobre as novas descobertas que ia fazendo. Em contrapartida, o carvalho falava-lhe sobre tudo o que tinha testemunhado ao longo de mais de 1000 anos de vida.

Certo dia, alguns rapazes e raparigas da aldeia mais próxima dirigiram-se ao carvalho, à procura do João. Nos seus rostos, traziam a expressão habitualmente reservada ao portadores de más notícias: A alguns quilómetros a sul dali, uma nova barragem tinha acabado de ser construída e todos habitantes deveriam evacuar o vale. Dentro de algum tempo, toda a floresta estaria submersa...

Ao longo das semanas que se seguiram, o João assistiu à partida de toda a gente, fazendo questão de se despedir convenientemente dos seus amigos mais próximos. Como sempre, com um grande sorriso e muitos abraços. Muitos insistiram com ele para que os acompanhasse. Alguns até se ofereceram para lhe dar casa, comida e amizade eterna. O João aceitou de bom grado as ofertas de amizade, mas recusou tudo o resto.

Enquanto as águas subiam, centímetro a centímetro, dia após dia, o João manteve-se na sua cabana. Do cimo do carvalho milenar assistiu ao êxodo frenético dos animais da floresta, relutantemente à procura de terras mais altas e secas.

Enquanto as águas subiam, centímetro a centímetro, dia após dia, o João assistiu ao desaparecimento gradual das plantas do vale. Os arbustos, as árvores pequenas, as árvores médias, as árvores grandes, as árvores maiores. Gradualmente, o tronco do carvalho encolhia também, como se as águas engolissem um ano de história do vale por cada centímetro de cortiça.

Ano após ano, centímetro a centímetro, dia após dia.

Quando as margens do riacho deixaram de pertencer a um riacho, mas sim a um lago, quando a água invadiu finalmente o chão da cabana do João, o rapaz abraçou com todas as suas forças o tronco principal do velho carvalho e disse baixinho, como se segredasse a um ouvido invisível:

"Obrigado, pai".

E desapareceu na casca da árvore.

Agora, vários anos depois de o vale ter sido submerso nas águas da barragem, há quem repare por vezes no que parece ser uma floresta no fundo do lago. A maioria não liga, julgando tratar-se de um mero reflexo na água. Mas os mais atentos irão reparar que não existe nenhuma árvore nas suas margens.

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