sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Jardim Botânico de Lisboa, nº1

Os próximos dias da Esfera de Sonhos vão ser dedicados às fotos que tirei durante as férias, mas que não tive possibilidade de publicar.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Uma floresta na água


Fui de férias e deixei o blog pendurado. Ainda por cima com a promessa de um conto... Não se faz!

Mas já estou de volta. Portanto, sem mais adiamentos, aqui fica "Uma floresta na água".


Esta é a história do João, um miúdo que vivia sozinho numa cabana numa floresta no fundo de um vale.

A casa do João tinha sido construída por ele mesmo no centro do vale, junto ao riacho, no ponto em que se encontravam as duas montanhas que o ladeavam. Para evitar as correntes de água que invadiam as margens do riacho em alturas de maior chuva, o João construiu a sua cabana no cimo da árvore mais antiga do vale, um velho carvalho tão velho, tão velho que já era velho quando os tetra-tetravós dos velhos da região ainda eram tão novos quanto o João.

Ninguém sabe ao certo porque é que o João vivia sozinho no cimo daquela árvore. Há quem diga que era órfão, há quem diga que não. Há quem diga que era filho do alfaiate, há quem diga que isso é disparate. Há quem diga que era selvagem, há quem diga que se perdeu numa viagem. Ninguém sabe.

O que todos sabiam é que o João era um miúdo feliz e que todos gostavam dele. Quando os restantes habitantes do vale se cruzavam com ele eram sempre brindados por um enorme sorriso e muitos abraços. Mesmo quando passava a correr (o que era muito frequente), o João parava sempre para cumprimentar convenientemente toda a gente.

O que poucos sabiam é que, na verdade, o João não vivia sozinho. Ou melhor, não vivia com ninguém, mas estava sempre acompanhado.

Baralhados? Bom, eu explico.

Para o João, toda a floresta era sua companheira. Quando era muito pequenino, enquanto as restantes crianças do vale aprendiam a falar português, o João aprendia a falar arvorês, riachês e passarês. Enquanto as restantes crianças do vale aprendiam a ler e a escrever, o João aprendia a ouvir e a falar a música da floresta.

O seu maior companheiro era precisamente o carvalho onde tinha construído a cabana. Os dois costumavam conversar durante horas, ao longo das quais o João contava sobre as suas aventuras do dia e sobre as novas descobertas que ia fazendo. Em contrapartida, o carvalho falava-lhe sobre tudo o que tinha testemunhado ao longo de mais de 1000 anos de vida.

Certo dia, alguns rapazes e raparigas da aldeia mais próxima dirigiram-se ao carvalho, à procura do João. Nos seus rostos, traziam a expressão habitualmente reservada ao portadores de más notícias: A alguns quilómetros a sul dali, uma nova barragem tinha acabado de ser construída e todos habitantes deveriam evacuar o vale. Dentro de algum tempo, toda a floresta estaria submersa...

Ao longo das semanas que se seguiram, o João assistiu à partida de toda a gente, fazendo questão de se despedir convenientemente dos seus amigos mais próximos. Como sempre, com um grande sorriso e muitos abraços. Muitos insistiram com ele para que os acompanhasse. Alguns até se ofereceram para lhe dar casa, comida e amizade eterna. O João aceitou de bom grado as ofertas de amizade, mas recusou tudo o resto.

Enquanto as águas subiam, centímetro a centímetro, dia após dia, o João manteve-se na sua cabana. Do cimo do carvalho milenar assistiu ao êxodo frenético dos animais da floresta, relutantemente à procura de terras mais altas e secas.

Enquanto as águas subiam, centímetro a centímetro, dia após dia, o João assistiu ao desaparecimento gradual das plantas do vale. Os arbustos, as árvores pequenas, as árvores médias, as árvores grandes, as árvores maiores. Gradualmente, o tronco do carvalho encolhia também, como se as águas engolissem um ano de história do vale por cada centímetro de cortiça.

Ano após ano, centímetro a centímetro, dia após dia.

Quando as margens do riacho deixaram de pertencer a um riacho, mas sim a um lago, quando a água invadiu finalmente o chão da cabana do João, o rapaz abraçou com todas as suas forças o tronco principal do velho carvalho e disse baixinho, como se segredasse a um ouvido invisível:

"Obrigado, pai".

E desapareceu na casca da árvore.

Agora, vários anos depois de o vale ter sido submerso nas águas da barragem, há quem repare por vezes no que parece ser uma floresta no fundo do lago. A maioria não liga, julgando tratar-se de um mero reflexo na água. Mas os mais atentos irão reparar que não existe nenhuma árvore nas suas margens.

domingo, 19 de agosto de 2012

Uma floresta na água (prefácio)

Só por si, esta foto que tirei numa tarde à beira da piscina não me sugeriu nada para escrever. Mas quando escolhi o título começaram logo a borbulhar na minha cabeça os ingredientes para mais uma pequena história.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Inês submersa, nº2

Como vos disse há pouco, este fim-de-semana capturei uma Inês Submersa na piscina da minha tia Ana.


A Inês Submersa é uma espécie muitíssimo rara (tão rara, aliás, que só há registo da existência de um espécimen em toda a história da humanidade) e, consequentemente, o seu valor é incalculável.

Estava eu calmamente à beira da água, a chapinhar os pés e a pensar no sentido da vida, quando... FLASH!! Um imenso clarão iluminou toda a piscina, tão intenso que, por momentos, tudo à minha volta ficou branco.

À medida que recuperava a visão, comecei a aperceber-me de algo que se movia na água, junto aos meus pés. Convencido de que estava a alucinar (resultado evidente do consumo excessivo das receitas deliciosas da minha tia), mantive-me mudo e imóvel (provavelmente de boca aberta e olhos esbugalhados) enquanto aquele ser maravilhoso se deslocava na água como uma sereia.

A minha pose heróica de estátua embasbacada só se desfez quando a Inês Submersa me tocou no pé e disse, com um sorriso doce:

- Blub. Blugublug, blb...

Claro. Estando ela debaixo de água e eu à superfície, a comunicação não era fácil. Portanto, enfiei a cabeça dentro de água e disse-lhe:

- Nhlub prblub nlub... - (Ou seja, "não percebi nada...")

Pelo ar de indagação desenhado na cara da Inês Submersa, percebi rapidamente que a minha mensagem também não tinha passado.

Mas eu não iria aceitar a derrota. Levantei-me num pulo, corri até à praia mais próxima e pedi a um caranguejo eremita que por lá passava se me emprestava o seu búzio. A negociação não foi fácil, mas acabei por conseguir trocar o empréstimo do búzio por uma maratona de documentários sobre a vida marinha em minha casa.

- Sabes, o meu primo é estrela de documentários, mas nunca o consigo ver porque a TV cabo não abrange a minha área de residência. - Explicou o caranguejo.

- Mas... a tua casa é portátil. Podes ir com ela para onde quiseres, não é?

- Nã, nã. Esta é só a minha casa de férias. Achas que eu ia andar o ano todo com a casa às costas? Nã, nã. Tenho mais que fazer, pá!

Munido de um búzio, corri de volta para a piscina onde a Inês Submersa ainda me esperava. Ajoelhei-me à beira da água, segredei algumas palavras para dentro do búzio e coloquei-o na água. A Inês Submersa encostou-o ao ouvido, fez uma pausa e olhou para mim sorridente antes de segregar também qualquer coisa para dentro do búzio.

Retirei o búzio das mãos dela e pressionei-o firmemente contra o meu ouvido direito, com medo de perder alguma palavra.

- Amor? - Disse a voz dentro do búzio - Estás a sonhar acordado outra vez?

- Não sei.

FIM

P.S. -  Porque gosto muito das duas versões, aqui fica a foto original. Na versão a preto e branco usei um filtro azul para fazer o efeito que podem ver em cima.

Inês submersa

Primeira foto do dia.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Leitura nas nuvens

Quando estou a ler, o resto do mundo desaparece.


Se não estiver a caminho da inconsciência causada pelo cansaço ou pelo sono, basta-me ler uma ou duas linhas e puf! Deixo de ser "Manel, o tipo a ler um livro" e passo a ser "Manel, o observador invisível de uma história que não é a dele".

Por vezes, fico de tal forma imerso nas letras que me esqueço de coisas elementares... como a lei da gravidade, por exemplo. Sem dar por isso, acabo muitas vezes por descolar-me do chão e flutuar, à deriva pelo espaço.

O problema, como deverão calcular, é quando interrompo a leitura.

"Ena. Este livro é mesmo bom. Até parece que estou a voar", penso eu imediatamente antes de perceber que estou mesmo. "Mas, que...?", este último meio-pensamento é rapidamente seguido pela inevitável vocalização da expressão "AAAAAAAAAAAHHHHH!!!" e pela reverberação do som "BADUUUM!!".

Felizmente, quando me lembro da lei da gravidade, ainda demoro um pouco até me lembrar de que não é suposto ficarmos inteiros quando caímos do céu. Poderia ser pior, portanto. Como nas vezes em que me esqueço da teoria da força nuclear fraca e, sem dar por isso, desintegro-me e fico espalhado pelos quatro cantos do universo...

Nessas vezes, demoro sempre um pouco mais a voltar à Terra.

(Na foto podem ver a contracapa de "The Men Who Stare at Goats", de Jon Ronson.)


Entardecer em Lisboa, nº10


sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Entardecer em Lisboa, nº9 ("Aceso ou apagado?")

Já andava há uns dias para conseguir tirar esta foto. Não sei se é perceptível, mas as luzes deste candeeiro estão apagadas. Parecem acesas porque o candeeiro está em contraluz.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Manel e a conspiração dos peixes, 2ª parte


Como vos tinha dito ontem, estive na Biblioteca Esquecida dos Assuntos Submersos à procura de uma explicação para a conspiração dos peixes.

Na recepção falei com o Sr. Eliseu, bibliotecário extraordinário, e expliquei-lhe a minha situação.

- Boa tarde Sr. Eliseu. Como está? Os caranguejos voadores continuam a dar-lhe problemas?

- Hrm. Bah. - Resmungou o ancião, antes de desencostar o nariz do livro de registos - Que praga, meu jovem. Demorei quase dois anos para conseguir livrar-me das Cnidaria Scyphozoa Cantanti e agora tenho as prateleiras cheias destes Callinectes Sapidus Volitans que só querem saber de livros sobre "pensamento lateral".

- Realmente... Alguma coisa que eu possa fazer?

- Não, não. Hrm. Isto há de se resolver. - Respondeu com um ar sereno, antes de se levantar bruscamente, dar um valente murro na mesa e gritar com todo o poder dos seus pulmões - SEUS MARGINAIS!

Durante alguns segundos o Sr. Eliseu ficou ali, parado como uma estátua, de punho erguido aos céus e uma expressão de fúria no rosto, cujas rugas despertavam memórias de um o mar revolto numa noite de tempestade.

- Hrm. Mas diga lá, meu jovem. O que trás por cá? - A fúria desapareceu tão rapidamente quanto apareceu.

- Bom. Sabe. Acho que existe uma conspiração de peixes contra mim.

- Ah, sim? E porque é que diz isso? 

- Porque, ao contrário das outras pessoas, nunca consigo comer peixe sem cravar espinhas nas gengivas. A conclusão é irrefutável.

- Hrm. Acho que já li qualquer coisa sobre isso... Só um momento.

Num piscar de olhos, o Sr. Eliseu deslizou como uma enguia entre uma parede de estantes e o que parecia ser um enorme ídolo pertencente a uma qualquer civilização esquecida.

Enquanto esperava, distraí-me a observar o que faziam os restantes clientes da biblioteca.

Junto à proa de um colossal navio onde se lia o nome "Argo", o deus assírio-babilónico Dagon e o Adamastor riam-se a bandeiras despregadas enquanto trocavam excertos de H.P. Lovecraft e Camões. Um pouco mais perto, dentro de uma garrafa de rum poisada na terceira prateleira de uma estante feita de coral, o Neils Olgerson contava histórias da sua maravilhosa aventura a um liliputiano gordo e claramente cheio de sono.

- Aqui está, meu jovem. Hrm. - Disse o Sr. Eliseu, enquanto me entregava cinco volumes escritos numa língua estranha.

- Muito obrigado. Mas eu não ser ler esta...

- Balquinaquês.

- Isso. Não sei ler balquinaquês.

- Não se preocupe. Hrm. Aqui está um dicionário Balquinaquês-Português.

Munido de toda a informação necessária, entreguei-me à árdua tarefa de decifrar os livros que me foram entregues. Naturalmente, comecei pelos títulos, não só porque estava curioso sobre a identidade daqueles tomos ricos em conhecimento, mas também porque sou preguiçoso e só tinham uma palavra cada um.

Consultando o dicionário, decifrei rapidamente o primeiro título:

"aprende"

O segundo:

"a"

O terceiro:

"usar"

O quarto:

"os"

E finalmente o quinto:

"talheres".

FIM